Hai-kai, Mario Quintana

"Rosa suntuosa e simples,
como podes estar tão vestida
e ao mesmo tempo inteiramente nua?"

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Flerte

Você quer se jogar da janela e cair em um lago fundo,
Na toca do coelho branco, na delícia do que não há.

Mas o chão é de concreto e, para além do seu sangue,
Há outras coisas que o tornam grosseiro e imundo.

Afaste sua alma da janela e dos lagos, dos países das maravilhas.
Afaste sua carne do beijo no asfalto.

Pise descalço na grama. Sambe um pouco.
Jogue a cabeça para trás, ria.

O mundo continua sem nós, apesar de nós.
Você não vai querer perder o que há guardado,

Esperando que as portas (que sempre estiveram apenas encostadas)
Sejam abertas de par em par e,

Sem mergulho final, você seja finalmente livre.

Cronológico

No relógio quebrado do meu quarto
São sempre duas e trinta e quatro.
Se eram da tarde ou da manhã não sei de fato dizer.

E, sabendo que ele está quebrado, eu o consulto periodicamente.
Porque, talvez, alguma mágica pudesse trazê-lo de volta.

Se o relógio quebrado saísse de duas e trinta e quatro
Talvez o apartamento da Avenida Nossa Senhora de Copacabana
Não estivesse mais vazio.
(Talvez alguma mágica pudesse trazê-lo de volta)

E confiro, obcecada com o ponteiro dos segundos,
Se ele saiu de cima do número seis.
Duas horas, trinta e quatro minutos e trinta segundos.
O despertador me acordaria às onze,

Se o ponteiro dos segundos mexesse.
O relógio pequeno, preto, quebrado, segue parado
Mesmo que o grande tempo
(Esse pai que engole a todos nós)

Circule indiferente. Como o são indiferentes as correntes de ar.
Tempo e vento me arrastam,
Mas eu só queria que, por mágica, o ponteiro dos segundos mexesse.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

De fadas

É como se eu fosse, há dias,
Feita de um material mais denso do que o ar.

Não de carne, mas de água gelatinosa.
Como se pudesse derreter,
Como se pudesse virar espuma ao me jogar no mar.

Minhas escaras são de silêncio
E percebo que, além da voz sufocada,
Trago os cabelos curtos das irmãs de Ariel.

Ela usou a adaga conseguida em si mesma
E se jogou da falésia.

Eu aceito com paciência as escaras, minhas adagas,
E me jogo no mundo.

Mas isso não torna menor a saudade.
Isso não me torna menos espuma-gente.

Isso não leva embora a dor.

Para além

O que eu queria mesmo
Era puxar de dentro do peito
Esses amores que, de secos, morrerão

E fazer deles origami.
Dobrá-los em borboletas, tsurus
Apertá-los em um sopro de flauta
Ou um doce macio.

O que eu queria mesmo era ser feliz para sempre.
Queria mesmo romper as diversas cascas que há dentro de mim.

Eu queria mesmo amar para sempre.
E fico com uns amores cactus, que não precisam de muita água,
Cheios de espinhos que doem tudo por dentro.

Eu queria mesmo um amor-rosa
Tudo bem que tenha espinhos,
Mas que haja perfume, mas que haja beleza,

Mas que haja chuva.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Êxodo rural

Dia azul e branco de saudades mis.
Encerrei minha existência ao meu quarto
Para dar descanso ao corpo e ao peito.

Saudades grandes de gente que ocupou longas extensões de terra e memória em mim.
Saudades de antigos posseiros de lotes menores
E pomares coloridos.

Ando, dentro de mim, pelos pomares abandonados
De onde apenas eu retiro a erva daninha.

Debruço-me em cercas e olho os latifúndios improdutivos
Cujos donos já partiram (há muito ou há pouco).

E suspiro dentro de meu universo sem vento
Sem nuvens e sem chuva.

Dentro de meu universo carente
De uma reforma agrária.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Pesadelo

Acordei em um sobressalto estranho
Com um presságio apertado
E meu peito sabendo que o estranho ao meu lado

Era o mesmo estranho que ao meu lado dormira
Era o mesmo estranho que, de seu lado, me cortara.

Meu peito dizia: são os mesmos cabelos são as mesmas mãos.
Mas meus olhos insistiam que aquele quarto não fedia
Que aquele quarto não lotava
Que aquele quarto era seguro.

Mas minha cabeça insistia que naquele cheiro não tinha cigarro
Naquele peito tão tinha violência
Naquele abraço não havia traição.

Acordei de sobressalto, estranho,
Com um presságio sufocado
Imaginando que o estranho ao meu lado
Me feria outra vez.

Virei o corpo e olhei seu nariz
Olhei sua tez e suas mãos com minhas mãos no escuro.
Não era, dizia agora todo o corpo meu.
Não era.

Sem que o estranho soubesse,
Acariciei seus cabelos com gratidão
Pelo simples fato de não ser aquele que repudio

E, com menos medo por aquela noite, dormi.

domingo, 10 de fevereiro de 2013

Semente

Estou grávida do desejo de ter um filho.
E, no escuro, sonho com os pés da minha criança
Nadando dentro de mim.

Estou grávida do desejo do amor mais pleno
E de senti-lo crescendo até a explosão.

Grávida, grávida não estou.
E, agora, nem mesmo quero estar.
Mas quero um menino no colo

Um nariz pequenininho, uma boca redondinha
Bracinhos que se agitam e aquele peso morno
Aquele peso morno no meu peito...

Sonho com Clara e Francisco,
De mãos dadas em uma praia,
Rindo alto e dançando. Tecendo rendas de areia
No meu coração.

Estou grávida do desejo de uma criança
Desejo alimentado pelas crianças que não são minhas
E pela promessa de realização, em um futuro distante...

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

devora-me

Acordei encharcada em suor de febre.
A febre, como todos sabem, é fria.
(Na febre, só a pele humana é quente)

Estava fodida.
O besouro do banzo tinha arrancado
Com seus dentes pútridos
Um pedaço essencial de mim.

Me foi dito que todo mundo tem umbigo,
Mas eu sabia que era ali que o bicho vivia em mim.

Fodida sem pele humana quente
Apenas o bicho sujo que cavava em mim.

Acordei encharcada e me debatendo
Porque era de pele que eu precisava

Só um peito com coração que bate
Humano e forte

Manda embora harpias, besouros, banzo e pus.

Pluvial

E então, sem motivo, sem rosa, sem amante,
Sem leão, sem amor,
Abriram-se as portas de meu quarto escuro

De par em par. E a onda da água mais translúcida
Inundou tudo o que havia em mim.
Sou a chuva que cai do céu há dias

(desde que ele morreu?),
Sou a língua negra que se infiltra na praia.
Sou as poças do Largo de São Francisco.

Sou água. Límpida de sujeira.
E, mesmo lama imunda, sou clara
Por ser honesta. Por ser coragem.

Sem sorriso, sem lágrima, sem suspiro,
Sem ninguém que afastasse o véu que cobre meu rosto
(as rendas brancas com as quais me escondo),
Há um dilúvio em mim.

De mim.
Eu sou a tempestade, o fogo e a alegria,
Mas, hoje, sou apenas o cansaço e a solidão.