Hai-kai, Mario Quintana

"Rosa suntuosa e simples,
como podes estar tão vestida
e ao mesmo tempo inteiramente nua?"

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

magia

O que é verdadeiro me vem no silêncio
Pois as palavras significam os atos
Mais do que os próprios atos significam a si.

Portanto, o que é verdadeiro me vem na ausência de poesias
Me vem na ausência de discursos
Me vem entalado na garganta ou liberto por suspiro.

Minha dor verdadeira ocorre em bolo, embolada,
Sozinha em um canto tentando não chorar.

Meu amor mais verdadeiro
Vem em um sorriso pequeno e simples
Em olhos que não desgrudam
Em mãos que ousam acariciar

E meus lábios, em sua magia transformadora,
Apenas balbuciam ante o mundo
"Eu... eu... eu..."

Abracadabra.

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Um ninho de mafagafos

E, sem motivo racional, mutuamente as mãos se buscaram
Ao entrarem juntos no mar. Não que tenham entrado juntos,
Só calhou de entrarem um após o outro, porque a areia perdera a graça.

Não que fossem namorados, não que fossem amantes,
Uns beijos (todos os dias), dormirem juntos (todas as noites),
Darem as mãos (de surpresa)
Não faz de nada descompromissado um laço no peito, faz?

Eram só férias. Eram só distantes. Era só complicado.
Era só um nó no peito embolado com tantas outras linhas.
Podia ser só linha embolada, nem um laço mesmo.

Mas os dedos se embolaram no mar
E se soltaram na primeira onda,
Surpresos com a ousadia de suas mãos.

E, na areia, evitavam encarar
Seus corpos meio nus, seus cabelos meio secos, seus medos meio sinceros
Seu laço meio embolado.

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

A espera

Abram todas as cortinas, tirem o pó dos móveis,
Escovem os sorrisos, perfumem as flores todas
Porque hoje chega o meu amor.

Limpem as crianças, arrumem os livros,
Tirem todas as músicas de dentro das vozes
Porque ele já vem.

Sentem às janelas, olhem a lua que cresce!
Olhem o sol que brilha!
Olhem a chuva que murmura!

É hoje, eu sei.
Seria ontem e anteontem também.
Mas hoje ele vem.

Olhem a lua que mingua!
Como é belo o entardecer!
Ele vem coberto de terra

E eu o espero de rosto limpo, de cabelo lavado.
Ele vem da longa estrada
E meu coração batuca.

É hoje, é hoje!

Talvez amanhã...

Avoa

No futuro que almejo,
Liberdade, palavra serena,
Não reside em pátria alguma,
Não possui hierarquias,
E pesa nas mãos de iguais.

Liberdade, palavra sangrenta,
Vem de chispa nos olhos
E força na voz.
Na voz una de grito

Na voz una de multidão,
Liberdade vem junto
Liberdade vem juntos.

Sem tutores, sem pátrio poder,
Sem nação.
Liberdade é vento.

E vento arrasta, muda, depõe.

10/1/13

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Cicatriz


Ao longe ouço os canhões atirando e sei que,
Invariavelmente, chega a guerra.
Mas o céu continua azul e o vento sopra.

É um erro falar em guerras mundiais,
Quando o mundo é e nós estamos.

Sei que, invariavelmente, homens e formigas marcham
E a guerra é só minha.
Homens e formigas marcham
E chegam as datas das provas

Terei de fazê-las, trajando luto ou não.

Marcham. E a Morte me envolve em seu manto de saudade.
A Morte me diz: "Espera." E não me deixa escolhas.
Eu costumava me espantar na infância quando, de súbito, era chocada com a consciência: respiro. E, se as cores da terra sempre me pareceram óbvias e necessárias, belas sempre, as formas sujas do concreto me violentam ainda hoje. Violentam porque, em tudo, vejo (assim como o operário construído)  marca da mão de vários operários que levantaram a construção.
"Foi gente que fez isso" me surpreendo. Gente de sangue, de carne e sem mistérios. Gente que não é necessária. "As formiguinhas seguem marchando" dizia minha mãe frente às tragédias humanas, como se lembrando a ela e a mim de nossa pequenez. A terra é óbvia, necessária, a terra expande minhas costelas em afeto. A gente existe, sem explicação.
Conforme cresço, os choques de realidade se tornam mais esparçados e violentos. Então, de súbito na rua, percebo: existo.

Descomplicado

O céu branco sem chuva
O ar cheio de insetos
As aleias cheias de flores

Sento-me em frente ao lago
Com meu amigo ao lado
E em silêncio permanecemos

Ouvindo o zumzum, ouvindo o chilrear
Em silêncio permanecemos
Porque, no afeto, respirar é o bastante.

Contemplar me basta
Porque a mim basta meu peito

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Há dentro de mim um quarto escuro cuja porta é pesada como um cofre.
Uso-o para lacrar o que dói e sangra. Uso-o para esconder o que me dá medo.
E me obrigo a aceitar as coisas que me dão medo como parte de mim, porque eu "vivo apesar de" (vivo mesmo) e até a falar delas com as pessoas, como se não importasse. Como se nada importasse.

O problema começa quando eu descubro que algo particularmente pavoroso existe fora de mim. Que pessoas falarão do assunto comigo sem saber o quanto as paredes  do meu quarto balançam, o quanto sua porta é socada... Porque eu mantenho meu quarto trancado. Escuro. Escondido atrás de um quadro de sorriso e outro de altivez.

Houve um terremoto dentro de mim que deixou a porta de meu quarto do pânico empenada. E além de chutar e esmurrar, os meus monstros esgueiram suas garras centímetros para fora dela, arranhando o que encontram no caminho.
Apertam meu pulmão e minha garganta. Apertam meu estômago. Apertam meu coração com força.

E os quadros continuam no lugar. Com sorriso e altivez.