Hai-kai, Mario Quintana

"Rosa suntuosa e simples,
como podes estar tão vestida
e ao mesmo tempo inteiramente nua?"

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

No centro do nada

Eu tremia horrores e acho que você notou. Deve ser porque eu não tenho o Tato.

Depois de dias e semanas caminhando sobre brasas e nadando em geleiras, cheguei ao objetivo: o centro do nada.

Lá, fincada como uma bandeira de posse, estava a imagem de um deus que não é o nosso.

"Quem colocou isso aqui?" E só a simples ideia de alguém chegando antes de nós a um lugar que acreditávamos não existir me encheu de medo.

Creio que foi por isso que meus músculos ficaram tesos e meus pelos se arrepiaram. Olhei para você, esperando ouvir uma palavra de sobriedade.

Seu rosto estava todo molhado. Olhei para a abóbada sobre nós. Nenhum sinal de goteiras. Olhei para o chão a meus pés e vi marcas de pingos ao meu redor. Eu vazava água também.

Olhei de novo para o totem gasto de algum povo dilacerado como nós (se não o eram, o que faziam naquele lugar?) e tive a impressão de algo comprimido em meu tórax, onde deveria ficar meu coração se eu tivesse um.

Vim aqui buscar você, levar de volta para suas feras, para o povo que você deixou para trás.

E me escolheram entre os seus órfãos por eu ser oco e irredutível. Mas essa estátua de um material que eu não conheço me enfeitiçou e agora me sento ao seu lado para olhá-la e vazar até que só reste pó do que eu fui.

Sinto sede e provo de sua água. As gotas têm o sabor do oceano infindo que tive de cruzar para chegar ao nosso destino. Olho para o seu rosto (agora, mais vazio do que o meu) e me pergunto se esse travor vem de seu âmago ou é só mais um feitiço do estranho ídolo.

sábado, 16 de janeiro de 2010

Trama

Desde que posso me lembrar, mamãe me alerta
quanto aos homens-aracnídeos. São muito sedutores, ela diz,
porém, é quase impossível escapar de suas teias.

Eles chegam de mansinho e elogiam sua beleza,
(ninguém nunca tinha me elogiado antes,
afinal, eu sou só preta e amarela, como qualquer outra operária)

te convencem a não trabalhar, te apresentam seus amigos cigarras
e, quando finalmente perceber, estará toda grudada em sua teia.
Mesmo que seu novo dono (porque você se tornou apenas uma escrava)

injete veneno em sua corrente sanguínea,
você não terá como escapar. Porque, depois do veneno é melhor ainda.
E você quer, mas não quer (e não sabe como) escapar.

Quer se livrar dele, porque já vê como tudo terminará,
mas teme como serão os dias sozinha.
E ele te deixa voltar para a colmeia,

e você, crédula, acha que isso é amor.
No fundo, ele apenas quer que você perceba que as outras te olham diferente
todos já apontam e sussurram por suas costas

dizendo: "Lá vai a futura refeição da aranha"

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Não sei se foi você ou fui eu
Que me vi primeiro no baile.
Sei que eu dançava de olhos fechados,

Conformada com o fato de não haver um príncipe à minha espera.
Sei que eu girava no mesmo lugar e mordia os lábios.
Sei que achei sua máscara sem-graça.

Achei você tão comum...

Eu gostava de pensar que era a cortesã mais inteligente
A mais interessante. Acho que você pensava a mesma coisa de si
E creio que foi a nossa arrogância que nos aproximou.

Conversamos tanto, sem dançar. Pelo menos por um tempo, mesmo assim continuei surpresa quando você me pediu uma valsa.
Nunca passou pela minha cabeça que eu fosse capaz de permitir que você (logo você) me girasse pelo salão.
E eu lhe disse, diretamente, o quanto desgostava de sua fantasia

Nossas conversas eram frívolas, sempre tive a sensação de que bobagens eram tudo o que lhe interessava. Minha futilidade era tudo o que eu podia lhe oferecer.
Na verdade, não era segredo para ninguém que meu maior passatempo era estudar as bruxarias.
Mas, mesmo quando estava estudando-a, você nunca se interessou por mágica.
De nenhum tipo.

Não foi belo nem inocente o que houve entre nós.
Você queria dançar com alguém e eu estava cansada dos pares ocasionais.
Você me escolheu como um vestido ou um sapato.
Não. Péssima escolha de metáforas (Outra coisa que você nunca soube entender)

Quando escolhemos um produto há alguma coisa de encantamento, algo de mágico.
Houve alguma coisa de especial quando você olhou para mim?
Ou foi como um casamento arranjado? Com a carta com minhas qualidades boas e más e um pequeno retrato para provar que eu não era tão deformada assim?

Não importa. Agora não importa mais.
(Quem eu penso que estou enganando? Você pisou em meu orgulho)
E eu que me achava um pouco, só um pouquinho, sedutora...

Eu estava bem, girando no mesmo lugar e mordendo os lábios, sabia?
Eu estava bem, dançando com vários mascarados.

Sabe, o que mais doeu foi descobrir, ao me ver em um espelho, que sua máscara sem-graça era quase igual à minha.