Hai-kai, Mario Quintana

"Rosa suntuosa e simples,
como podes estar tão vestida
e ao mesmo tempo inteiramente nua?"

domingo, 25 de agosto de 2013

sentir

Já conheço de cor os traços do seu rosto,
Mas as pontas de meus dedos precisam lembrar-se
De novo e de novo. Leio seus segredos em braile.

A mão é mais próxima ao peito do que os olhos.
O toque acalma, faz lembrar que é tudo sólido, tudo real.

O corpo tem memórias e a memória tem tato.

Fim de tarde na Lagoa, grama suja sob a canga,
Luz laranja. Tudo sólido, tudo real.

sábado, 10 de agosto de 2013

aos meus amigos

Enterrem o meu coração junto aos seus
Na curva daquele rio largo que corta o horizonte.
Deles nascerão árvores e música.
Nossos sonhos adubarão essa terra.

Me enterrem com aqueles que escolhi como irmãos,
Soem os tambores quando eu me for.
Dancem, sigam a batalha.

Que meu coração sirva de adubo
Para o que chamaremos de revolução.

Revolver

Me ensinaram a temer a polícia.
Seus coturnos, suas fardas e armas.
Me ensinaram a ser sempre bandida,

A prender o fôlego diante de viaturas
E a só dizer "sim senhor" com desprezo.
A polícia me ensinou a odiá-la,

Me ensinou o que é medo, o que é poder.
E quero destruí-la, de cima a baixo,
Arrancar suas insígnias, vandalizar seus capitães do mato.

Já não aguento ser serva, escrava, calada.
Quero bater meus tambores
E que comece a guerra.

do amor

Marulha nas pedras a água clara
E eu só queria te dizer
Que te amei pra sempre,
Enquanto o pra sempre durar.

Acho que nunca estive tão feliz
(e é o que acham os amantes)
Nem tão certa de nós e nossas escolhas.
Enquanto durar o pra sempre,

Serei sempre contente, sempre fiel.
Justa, na medida do amor.
Minha, na medida da luta.
Nós, na medida do eterno.

I

À noite, as montanhas passeiam pela orla como velhas tartarugas de lendas. Eu as vejo e penso nos contos de Sherazade. Não são minhas amigas, as montanhas, nem tampouco me querem mal. São répteis antigos, a quem minha vida é tão distante quanto as estrelas...
Eu não sei se era melhor nos tempos em que era amor e era poesia, em que a poesia era a linguagem rude do amor, irmã feia da música. Mas que era mais fácil viver o amar e simples o sentir poético e musical, isso era. Talvez o problema seja o medo de se expor, o medo do ridículo. Agora penso em Drummond e Huxley. Penso que ridículos foram aqueles que nunca se expuseram e ridículos são aqueles que não amam. Penso que sou o selvagem no admirável mundo novo, querendo as intensidades apaixonadas, as febres violentas e o amor completo, tuberculoso, em um mundo de sentidos esgarçados de êxtase do soma, do ecstasy.
Quero o sexo paciente e o sexo desesperado, o coito angustiado daqueles que esperaram muitos anos para se ver uma última vez. Quero a nudez dos corpos, o suor das peles e a sofreguidão intensa a ser apenas suprida com o beber da saliva.
A contemporaneidade é um fardo àqueles que cresceram com Shakespeare e Keats e sou como o selvagem de Huxley, ansiando por um lirismo que já não existe. Sou?
As montanhas não dão respostas, apenas seguem seu curso até que o amanhecer as torne em pedra e a erosão faça delas pó.

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

das flores

Não pus na água a rosa branca que enfeitou meus cabelos,
Deixei-a apodrecer sem mumificação em cima da minha escrivaninha.

Mesmo murcha ainda é rosa querida,
Embora lembre de leve
Os pompons de tule das colombinas antigas,
Amarelados na foto em sépia

Rosa amiga, flor mulher,
Ensina-me sobre o tempo.