Hai-kai, Mario Quintana

"Rosa suntuosa e simples,
como podes estar tão vestida
e ao mesmo tempo inteiramente nua?"

sexta-feira, 30 de maio de 2014

jejum

Essa noite sonhei que você corria os dedos pelo meu corpo, me desenhando.
Não quero o corpo de mais ninguém.

Sonhei que você estava de costas em um balcão, lavando louça
E eu abraçava seus quadris por trás.
Lembro ainda do contraste da minha pele tão branca
Sobre a sua, morena. O ângulo do osso sob a minha mão,

O cheiro da curva do seu pescoço.
Sonhei ou lembrei? Sonhei que lembrava
Dos detalhes tatuados nos nervos.

É tão difícil se despedir de algo
Porque se quer mais!
É tão difícil admitir que não é que esteja ruim,
Só está pouco.

Eu nunca aprendi a contar calorias.

uivo

Como ondas que colidem entre si no mar bravio,
Minha tristeza atropela outras coisas
No caminho até minha garganta.

Queria uivar um canto antigo,
Que é música apenas nas minhas Fossas Marianas,
Sobre o que é sentir sua falta.

Tento não parecer tão decepcionada
E racionalizar a vida, as dificuldades, a falta.
Eu entendo, juro que entendo,

Não sou tão mesquinha assim.
Mas minhas sereias choram em coro
Invocando uma tempestade que não quero.

Aceitar quem sou, aceitar quem você é
Aceitar o que não somos.
Aceitar e seguir. Ser para além

Desses muros de sonho.

Você sempre me parece real
E a realidade vem em borrifos salgados
Revelar minhas ilusões.

terça-feira, 6 de maio de 2014

X

Sangro minha saudade sem dores.
A pílula previne tais arroubos do meu corpo,
Embora creio que ainda hão de inventar
Remédio que me puxe do fundo de minhas Fossas Marianas.

Sou de um caminho longo coberto de água salgada,
Com cavernas secretas onde não penetra nem som nem luz.
Chegar ao limite de minhas profundidades faz parte
De chegar o mais perto possível de meu núcleo magmático.

Pulso de saudades suas em essência fundida e sangue mensal.
Meu cálice se derrama em outro pequeno cálice, sinto-me uma ampulheta.
Cada gota de endométrio conta o tempo sem respostas.

No fundo dos meus oceanos nada pacíficos cantam sereias.
Músicas que se confundem com lamentos ou gemidos.
Meu sangue tem o banzo e o fado. E o silêncio guarani de minha tataravó.

O sangue grosso que escorre no banho
Tem lamentos portugueses e atabaques, no silêncio da aldeia roubada.
Sou herdeira de mulheres roubadas. E também das rebeldes.

É pensando nas N'zingas de meu passado tão longe
E nas guerrilheiras de meu passado tão perto
Que dimensiono a dor de ver você saindo da minha vida.

Mas isso são os barcos, as rotas da superfície.
No fundo, minhas sereias choram.