Hai-kai, Mario Quintana

"Rosa suntuosa e simples,
como podes estar tão vestida
e ao mesmo tempo inteiramente nua?"

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Contas de vidro substituíram gradativamente as pedras preciosas que ornamentavam os camafeus da família. Ainda conservou-se o orgulho aristocrático e a certeza da superioridade divina. Eram belos, unidos e sabiam seu lugar no mundo; a República, o penhor e as imitações de jóias não mudavam nada. Continuavam olhando do topo e sendo olhados como tal. Até mesmo sua morada refletia a conjuntura de sua decadência cheia de dignidade. Recusavam-se a considerar o velho casarão de paredes encardidas como uma casa, referindo-se a ele sempre como a Morada da Mui Nobre Família.
Ficava no topo da colina mais alta da cidadezinha, cuja imponência era diretamente proporcional ao tamanho do município e que acumulava lixo entre as florezinhas de sua encosta. As salas amplas estavam, em sua maioria, inutilizadas ou transformadas em depósito de inutilidades. Muitas dessas salas não tinham telhado e, através das vigas semi-apodrecidas de madeira, entrava de dia e de noite um pouco da realidade bela, ofuscante e inegável do céu. Essas salas eram evitadas pelos habitantes, cujos olhos se feriam na luz direta do sol e a carne adoecia com as gotas frescas da chuva, preferindo locomoverem-se em espaços de luz filtrada, de ruídos humanos e verdades abafadas em senso moral e sussurros.
Era uma gente muito correta e justa, que permitia que seus criados comessem as sobras de sua comida, dormissem em uma ala da Morada e até davam roupas usadas a eles e brinquedos velhos de seus filhos aos deles. As esmolas eram uma parte essencial da vida social e, com a redução de seus recursos, tornaram-se mais um compromisso trabalhoso por desfalcarem as contas apertadas. Para não passarem pelo vexame de reduzirem-nas, reduziram as compras de vestidos novos para as moças e o salário da criadagem, que compreendia ser necessário participar dos sacrifícios em prol daqueles mais miseráveis e aceitava a dureza da vida com a dignidade e resignação aprendidas com seus patrões.
As moças daquela família, muito corretas, muito disciplinadas, andavam pelos espaços em murmúrios baixos e risadinhas abafadas, costurando, sem reclamar ou pensar, suas roupas e as de seus pais e irmãos. Os homens faziam trabalhos e discussões muito importantes, cruciais e secretas, que lhes tomavam grande parte de seus dias, exaurindo-os completamente para que se importassem com qualquer outro trabalho menor. Comentava-se aqui e ali que conspiravam a volta do imperador ou a candidatura de um deputado, embora fossem apenas boatos incertos sobre a grandeza de suas discussões masculinas.
Às mulheres cabia o monitoramento da criadagem, o relaxamento de seus maridos, a manutenção da ordem e da correção sociais, o cuidado com as crianças, o exemplo de virtude moral, a administração das finanças domésticas e das esmolas, a coesão familiar e outras tantas tarefas menores. Eram todas pequenas, rijas, sobriamente vestidas e não gastavam palavras ou emoções à toa.
Os velhos tornavam-se velhos quando todo o viço e espontaneidade findava completamente, restando apenas cascas macilentas e enrugadas, pouco manchadas de sol, mãos nodosas e macias e olhos estreitos, cobertos de rugas. As bocas completa ou quase completamente desdentadas ocupavam-se em sugar o interior das bochechas ou esboçar esgares de desdém e comentários venenosos. Eles olhavam, julgavam e usavam sua autoridade máxima para manter tudo o mais parecido possível como era no tempo de seus avós.
No meio e à parte disso tudo, as crianças cresciam meio soltas, meio esquecidas, vagando em seus valorosos corcéis de pau por reinos distantes e desbravando selvas intocadas. Entravam nas salas destelhadas da morada, cujo acesso lhes era teoricamente proibido, e olhavam o céu sem medo; davam nomes às nuvens que, ao serem chamadas, vinham comer em suas mãos. Singravam mares de riachos e travavam imensas batalhas mortais. Sentavam, meninos e meninas lado a lado, e davam histórias às coisas e pessoas que os cercavam, integrando-as àquele mundo tão seu. Dos animais e das plantas extraíam segredos místicos, belos e inúteis – as coisas só são verdadeiramente belas quando sua utilidade se encerra em ser amadas e as crianças bem sabem disso – que tentavam compartilhar com os adultos. Mas, aos adultos, já lhes era impossível ouvi-las. As crianças falam uma língua musical, transparente e feita de sonho. Então, os pobres babelizados, incapazes de falar o dialeto primeiro, sorriam-lhes complacentes e empurravam uma moeda para comprar um sorvete e seu silêncio.
As crianças faziam de suas conversas peças teatrais em que interpretavam planos para futuros que não chegariam e viagens a lugares inexistentes, usando sempre o tom sério e grave que esnobavam e temiam ao ouvirem os grandes. No fim, sempre suspiravam e, aliviadas que a brincadeira acabara, orgulhosas de suas deliberações, punham-se a correr desabaladas pelas ruas e campos, explodindo a organização delicadamente estruturada com suas risadas espontâneas e agudas.
A vida era uma agradável espera de que o futuro não lhes alcançasse nunca.

2 comentários:

Ricardo Braga disse...

Realmente nossos textos são bem parecidos, apesar de eu praticamente descartar todas as relações sociais (o que é impossível, mas bem, licença poética é a melhor desculpa do mundo). Já tinha lido outros textos seus que falassem da visão das crianças, e realmente os acho muito bons! Acho que você mandou muito bem aqui!!

Ricardo Braga disse...

Realmente nossos textos são bem parecidos, apesar de eu praticamente descartar todas as relações sociais (o que é impossível, mas bem, licença poética é a melhor desculpa do mundo). Já tinha lido outros textos seus que falassem da visão das crianças, e realmente os acho muito bons! Acho que você mandou muito bem aqui!!