Hai-kai, Mario Quintana

"Rosa suntuosa e simples,
como podes estar tão vestida
e ao mesmo tempo inteiramente nua?"

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

Futuro?

Uma menininha de seus 5 anos pulava corda em frente ao colégio São Vicente de Paulo, localizado na Rua Cosme Velho, bairro de mesmo nome da cidade do Rio de Janeiro.
Seus cabelos presos em marias-chiquinhas iam e vinham, conforme o movimento de seu corpo.
Sozinha, murmurava uma cantilena de roda que suas avós também devem ter cantado enquanto repetiam esse costume familiar.

Ela podia ser sua prima.
Ela podia ser sua irmã.

Isso podia ser hoje, não fosse o fato de ser noite. Não fosse o fato de não haver viva alma nas ruas. Não fosse o fato de o Rio de Janeiro parecer a cidade submersa e desabitada de Chico Buarque.

Uma moça mais velha abrira a porta principal do colégio, assustada. Ela correu até a criança e a agarrou pela mão. Lá dentro, depois de trancar a porta, a abraçou chorando. Explicava-lhe que os tempos estavam difíceis, que não se podia mais ficar saindo à rua, que ninguém deveria vê-las, que ela não suportaria perdê-la também.

Elas podiam ser sua mãe e avó.
Elas podiam ser suas tias.

Isso podia ser ontem, não fosse o fato do colégio mais parecer uma fortaleza e todos os prédios ao redor também. Não fosse o fato de não havia polícia nas ruas. Não fosse o fato de não haver nenhuma lojinha, mesmo que fechada. Não fosse o fato de não haver faixas de protesto.

A moça levou a criança pela mão para o subsolo. A capela com os bancos de madeira não estava mais lá. Não havia murais nas paredes com avisos das aulas. Não havia pátio externo. Não havia cantinas. Através da passagem usada por muitos alunos como atalho mais fácil para o prédio onde ficava a morada dos padres por muito tempo, elas chegaram a um abrigo, onde vários refugiados se escondiam. Os colchões pelo chão eram camas provisórias. Quantos deles chegariam ao fim do ano com vida? Quem sabe?

Elas ficaram no corredor, precisavam ter uma conversinha. A mais velha pôs a menina no colo e começou a lhe explicar que, há muitos anos, não se podia mais sair na rua. Todos insistiram sempre em ignorar as situações. Em não chamar de Guerra Civil a situação do Rio de Janeiro, mesmo até no começo do séc. XXI quem dizia uma coisa dessas sempre era alarmista, doido. Como com o Aquecimento Global.
Além do aumento do nível do mar ter destruído a orla, além de a poluição ter chegado a níveis absurdos, além da comida e água passarem a ser racionados, matando milhares assim, todos cometeram o erro de abandonar cada um à sua própria sorte.
Os ricos se isolaram nas novas cidadelas, chamadas de “condomínios”. Lá dentro tinha tudo. Essas cidadelas foram ficando mais e mais isoladas e blindadas com o passar dos anos e o resto da população foi abandonada. Os políticos, os outros poderes também se isolaram com o dinheiro público.
Esse movimento estava acontecendo em todo o mundo, todos se isolando. E todos os sinais ignorados.
Os que insistiram em morar “do lado de fora”, em respirar o ar que ainda havia, os que não tiveram dinheiro para se trancar também foram largados lá. A maioria, mortos. O mundo parecia um filme de faroeste, sem lei, onde mandava a lei do mais forte. Os que perderam a família, a casa, podiam se abrigar em lugares como o São Vicente de Paulo.
-Mas eu só queria ver a lua...Queria sentir o vento no rosto...Queria poder brincar como a mamãe contava que as vovós faziam... –Soluçava a menina enquanto tentava secar as lágrimas com as mãos.
A mais velha a abraçou e murmurou que havia pouco a se fazer. Naquele instante, elas deveriam ir dormir, deveriam tentar viver mais um dia.

Elas podiam ser nossas filhas.
Elas podem ser nosso futuro.

Isso podia ser real. Se não fosse um conto.
Isso pode ser real. Se não fizermos nada.

3 comentários:

Unknown disse...

Interessante, muito bom mesmo.

VanKrieg

Johnny Deiro disse...

Bom dia!Pelo que percebo você é transparente e possui tal objetivos os meus.Me add no orkut,não envio scrap,mas sei que também é culta e gostaria de trocar idéias.Meu humor é compatível com o seu.Abraço

Beatriz disse...

Muito bom, maravilhoso.
Parabéns.