Hai-kai, Mario Quintana

"Rosa suntuosa e simples,
como podes estar tão vestida
e ao mesmo tempo inteiramente nua?"

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Carta para concurso

Eu escrevi essa carta em março de 2008 e estou publicando-a integralmente, suprimindo apenas o nome de minha antiga amiga; tinha acabado de entrar no Ensino Médio e pensei em concorrer, pela primeira vez, em um concurso literário. Eu não ganhei, óbvio (nunca ganhei prêmio nenhum em lugar nenhum, não que isso importe), e a destinatária da carta nunca a leu. Era para escrever para um amigo (imaginário ou não) que morasse longe de você, eu escrevi para essa minha "amiga virtual" que morava em Portugal, com quem, aliás, nem me correspondo mais.
De qualquer forma, hoje em dia eu tiraria um pouco as cores ingênuas e inflamadas do texto, os dois anos decorridos foram o bastante para eu me tornar mais cínica, mas o sentimento de revolta é o mesmo e, finalmente, o desejo de ver essa carta publicada e lida foi provocado pela solidariedade e a empolgação que sinto ao ver essas revoltas em busca da liberdade, igualdade e fraternidade que estão ocorrendo no Ensino Médio. Como eu já disse em outro texto meu (que um dia será publicado): ordem e progresso são antagônicos e só há um quando falta outro; no momento, discordo da Casa Branca e acho que o Oriente Médio precisa muito de progresso e muito mais de uma nova ordem.
Beijos

--

"Xxxxx,

tenho me assustado em descobrir como estou me tornando um monstro tão insensível como o resto do mundo.
Não é porque estou no Brasil, você em Portugal; não faz diferença. Esse é um estado de insensibilidade mundial. Batemos e ameaçamos nossas crianças para que aprendam que autoridades são para serem temidas, não respeitadas.
Ando nas ruas desviando dos pedintes, caçoando dos infelizes, dos loucos.
Encho a boca para citar Gandhi, mas o que ocorre é que não mexo uma palha para ajudar ninguém e isso me entristece.
Nós nos fechamos em gaiolinhas douradas, nos iludimos em um mundinho de faz-de-conta, choramos lágrimas secas por mortos que não são nossos e deixamos os nossos insepultos ao não nos importarmos em envergar seu luto.
O que eu quero dizer minha amiga, é que muita gente põe fotos de crianças esquálidas da África no Orkut e nunca se perguntou quais das empresas que vestem e comem exploram as ditas-cujas.
Vários vão às ruas protestar a morte dos filhos da classe média e compram narcóticos dos traficantes que os mataram e a tantas outras. Protestam por jornalistas mortos e apóiam a tortura policial.
Lamentam pelos pobres, fazem “bazares de caridade”, porém não fazem nada concreto para mudar a situação. Afinal, é muito conveniente ter uma classe baixa, senão, quem ia ser garçom?
Estou falando em terceira pessoa, mas eu me incluo em algumas partes. Somos humanos, erramos, falhamos.
O mundo talvez precise de mais tolerância, mas nem só de tolerância pode-se construí-lo. Quantas crianças morrem por mau funcionamento dos hospitais? Quantas não vão à escola por “falta de verba”?
No meu país, no seu. No nosso mundo. A cada época temos nossas necessidades e ser bom ou mau se ajusta a elas. O certo e o errado são definidos pela maioria, pelo senso comum. Porém, se as minorias não falassem, se as minorias não derrubassem déspotas de seus tronos, ainda estaríamos na Idade da Pedra.
Nesse exato momento pessoas morrem por causas estúpidas, por egoísmo, por ignorância. Morrem porque confiam em pessoas que se dizem profetas de deuses. Morrem porque confiam em pessoas que se dizem profetas do dinheiro, do progresso. Quando a última lágrima será derramada? Nunca, espero.
Enquanto pudermos gritar, gritemos. Enquanto pudermos protestar, protestemos. Mas nunca nos submetamos ao que consideramos errado.
Mas enquanto pudermos não derramar nenhuma gota de sangue, não derramemos. Pois o sangue derramado só gera lágrimas inúteis e leva vidas de forma irrecuperável. Diretamente ou não.
Muitos dos mártires ou heróis que a humanidade tanto adora adorar só foram oportunistas ou pessoas com muita sorte que surgiram em um momento propício para suas idéias serem levadas em conta. Muitos dos nossos grandes vilões da história também se enquadram na mesma categoria dos heróis.
Se pensarmos bem, na realidade, somos apenas poeirinha cósmica no nosso imenso universo. Não sabemos nada sobre nós mesmos e nos achamos no direito de julgar uns aos outros.
A grande verdade é que eu tenho medo. Tenho medo de armas, de guerras, da seca, da desigualdade.
Xxxxx, a gente me assusta tanto...
Meus olhos espreitam as ruas, as pessoas e seus sorrisos. Elas não percebem como a vida não passa de um sopro... nem nós.
E os homens exercem seus “podres poderes” sem se importar com as vidas sacrificadas. Choramos pelos genocídios ocorridos nos séculos passados, mas quem chora pelos mortos no Oriente Médio, na Ásia, aqui nas Américas ou aí na Europa? Me diz, quem de nós liga para os mendigos assassinados por policiais? Quem liga de verdade?
Protestamos contra os “políticos corruptos” que roubam não só o pão, mas as vidas de milhões, mas quem os coloca no poder? Deve-se tolerar isso? Ou seja, aceitar sem reclamar, sem se mexer? Temos força, temos capacidade e já provamos isso antes. Mas não nos mexemos, não desligamos a T.V. e levantamos da poltrona. Não fazemos nada além de assistir passivamente às vidas serem dissecadas no jornal. O tempo inteiro guerras santas são travadas em um laço de Moebüs. Você vê o fim? Você vê alguma razão? Eu não.
Não é questão de tolerância. Sempre houve dominadores e dominados e só sabemos viver assim.
A religião pastoreia as pessoas desde sempre e origina tantas guerras quanto o dinheiro, o petróleo.
Se não tivéssemos matado nossos deuses, será que eles chorariam, Xxxxx? Ou será que não cogitaram a hipótese de sofrermos com a nossa natureza doentia?
Se nos fizeram cruéis, por que nos dar a possibilidade de sofrer?
Mas isso é um elemento cultural, nós somos culturais. Culpa, tolerância, piedade, perdão, honra, crueldade... Todas as nossas ações são delimitadas pela nossa cultura, pela nossa Moral, pelo Senso Comum. Inclusive essa carta que eu escrevo criticando tanto a nós mesmos.
Mas ainda podemos mudar. Um pouco, talvez. Podemos reivindicar nossos direitos; podemos nos importar em ler nossas Constituições; podemos estender a mão para os que precisam ensinando-os a ficar de pé, não sustentando em nossos ombros; podemos pensar em construir não só um mundo melhor para nossos filhos e filhas que virão, mas para nós mesmos. Para todos nós.
O mundo precisa de tanta coisa que precisamos de um bocado de tolerância para ver nossas pequenas medidas fazerem efeito.
Aguardo o dia em que finalmente nos encontraremos.

Afetuosamente,
Maria

P.S: Na próxima, juro que te mando uma foto minha."

Um comentário:

Belchi Machado disse...

Tava passeando por vários blogs e acabei parando aqui no seu. Gostei muito do que li. Parabéns pelo blog. Muito maneiro!

Vou seguir :)

Sucesso!