Hai-kai, Mario Quintana

"Rosa suntuosa e simples,
como podes estar tão vestida
e ao mesmo tempo inteiramente nua?"

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Desgaste desgosto

Foi no meio daquele inferninho que ele a viu. No meio dos risos falsos, das vidas vazias, seus olhos o sugaram. Vazia como os outros, falsa como todos e demoniacamente perturbadora.
Quando tentava caminhar até ela, seu vulto desaparecia no meio da multidão, reaparecendo misteriosamente mais tarde em outro lugar, com a mesma taça de Martini, o mesmo sorriso carmesim e os olhos de abismo.
Queria mergulhar naqueles olhos, se perder ali para sempre.
Naqueles olhos da sua ilustre estranha. Quem era aquela mulher de olhos tão profundos, cabelos revoltos de vendaval e com o sorriso da serpente bíblica?
Voltava todas as noites e, quando a procurava intencionalmente, seu inferno particular não surgia. Apenas quando menos esperava, lá estava ela. Com o mesmo sorriso cheio de dentes, mordendo de leve o vidro da taça, como se dissesse que queria morder sua carne.
Um dia ouviu sua risada. O oco eco do som permaneceu em seus ouvidos por dias, tal concha e mar. O que ela tinha demais? Não era tão bonita, nem tão feia. Uma meretriz como as várias outras todas em que vira em toda sua existência.
Mas ele a precisava, precisava daquele sorriso maligno, daqueles olhos vazios e da risada falsa. Precisava de seus seios pequenos tentando saltar para fora da roupa extravagante e apertada.
Voltava e voltava, não ficava com nenhuma, pois nada mais lhe apetecia. Apenas ia lá se consumir no absinto esperando por algum fiapo de sua existência.
Nunca lhe passou pela cabeça perguntar à dona do local quem era tal criatura. Chamava-a em sonhos de Esperanza, talvez seu próprio sentimento em relação a ela.

Anos mais tarde, a viu na rua. Esbarraram-se em uma das muitas vielas escuras que tipos como eles frequentavam. Ela o olhou e deu o mesmo sorriso de sempre, com os dentes à mostra.
Passou direto, fingiu não reconhecer.
Ela não lhe interessava mais.

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