Hai-kai, Mario Quintana

"Rosa suntuosa e simples,
como podes estar tão vestida
e ao mesmo tempo inteiramente nua?"

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

do armário

Eu aprendi que era errado
Casar as minhas Barbies
Porque na escola me contaram.

Depois no colégio santo
Apontaram meus pecados,
Me fizeram enxovalhos,
Me gritaram sapatão.

E eu! Que não beijava nem meninos!
E eu! Que nem sabia o que era amor!

Já conheci o ódio e o desprezo,
Conheci o descaso da direção.
O conselho de se adequar para melhorar.

Ser boazinha, não ir tão bem na prova,
Arrumar um namorado, raspar as pernas,
Não usar moletom.

Amei minha amiga em um segredo bem guardado
Até de mim mesma, porque eu não queria
Ser o monstro de que fugiam no banheiro.

Bicho novo livre da escola
Fui forjando uma coragem que não sentia
Para amar quem não queriam.
Meios segredos, meias verdades, muito amor.

E a cada criança assassinada, suicidada,
A cada travesti espancada,
Retorce meu coração.

Sapatão. Sapatão. Sapatão.

A maioria já me enfrenta no ônibus,
Na rua, no carro com motorista que assovia.

"Olha para mim, vadia!"

Retorce meu coração.

Sapatão. Sapatão. Sapatão.

domingo, 31 de agosto de 2014

Vi uma história hoje que não era como a nossa. Mas, quando o aeroplano sobrevoou as planícies africanas carregando a mulher impetuosa e estável e o andarilho, não pude deixar de pensar nas histórias que você criou para nós e chorar mais uma vez em silêncio.
Não é que eu ainda o ame do mesmo jeito. A dor que sinto é como o espinho de saudade de um morto. ou da nostalgia por um sonho com alguém que jamais nasceu. Penso nas cores amarelas junto ao canal que fica naquele ponto entre a Lagoa e o Jardim Botânico e no jeito como você inventava bobagens sobre viajar o Brasil comigo, me fazendo relevar o fato de que mais uma vez eu fiquei te esperando por mais de duas horas. Sentada sozinha nas britas em frente ao museu, ouvindo música e mergulhada em autopiedade. Por que te esperei? Por aquelas duas horas e por quase dois anos?
A mulher civilizada, contida como você sempre me acusou de ser, confrontou o andarilho no filme. A liberdade dele consistia em eliminar todas as formas de liberdade dela. De querê-lo, de precisar tê-lo por perto, de ter medo,ciúme e sentir-se só.
Minhas amigas dizem que eu acho que você me amou bem menos do que de fato amou. Mas, se você diz que nunca soube praticar o meu amar calmo e que nunca foi capaz de me amar intensamente, só consigo concluir que você jamais me amou de ato. Eu acho que peguei suas tolices sobre o futuro imaginário para nós e transformei em um presente imaginário.
Ela o esperava ir e voltar sozinha na fazenda e, quando finalmente se percebeu exausta de acompanhar seu ritmo e impôs uma condição própria para a relação deles, ele foi embora. Você também.

terça-feira, 19 de agosto de 2014

fluidez

No ápice do ridículo inverno carioca,
Com céus de um azul desmaiado e chuva mirrada,

Após minhas grandes rupturas
(terapia, pesquisa, homem),

Chega, de um jeito estranho,
A massa de ar da minha nova estação.

Estou como se dentro de uma neblina
Em que ainda não sei o que virá.

O meu coração ensaia uns toques de címbalo
Que vibre meu tórax em notas suaves

E faz irradiar de meu rosto um brilho sutil.

Sou. Sou de uma frequência pacífica,
De carinhos e espontaneidade.

Além da neblina ouço murmúrios de riacho,
Esbarro em territórios de felicidade.

terça-feira, 12 de agosto de 2014

felino

Me retorci em um canto escuro
Enquanto um rapaz lambia minhas pernas e semi-sorria.
Eu não sabia, de fato, que uma lambida nas pernas
Me transformaria num gato.

Ronronei, gemi, estiquei e contraí minhas mãos
Enquanto a língua brincava com meu joelho,

Língua essa de um português tão próximo
E tão distante do meu...
Gemi como um gato, foi o que me aconteceu.

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

tinha cá pra mim que agora, enfim...

Esse samba vai me machucar para sempre,
Fazendo lembrar o cheiro de mijo da Carioca
E sua angústia depois de eu ter finalmente dito que lhe amava.

Você voltou meio ano depois,
Cutucando a casca da minha ferida com a ponta da unha
Até arrancá-la e fazer meu peito sangrar aberto de novo.

E foi embora com medo do amor
Que eu mantive ofertado.

Não era promoção barata, passageira,
Mas você acabou com o meu estoque
E fugiu sem pagar.

Aguardo a reposição do produto.

poema esmagado

Passo meus dias imersa em futilidades
E não consigo dormir cedo
Porque a noite é o momento que tenho para chorar

De saudades suas.
Como sinto sua falta, como sinto raiva de você!

Acho que o que mais me dói
É você ter tido a necessidade de cometer um último sincericídio.
Por que me dizer que eu estava certa,

Reafirmar que você nunca me amou?

Não quero ninguém mais muito perto
Porque ainda dói muito.

Então fujo do mundo, arrumei minha canoa,
E rosno aos visitantes da minha gaiola.

sacrificial

Apaguei suas fotos do meu celular,
Vou te matando aos poucos,
Te expulsando dos espaços do meu cotidiano.

Estou me apropriando das distâncias que você criou,
Aproveitando a inércia da mágoa do seu último chute
na minha boca. Você nunca me amou, disse.
Nunca trem descarrilhado, nunca sonho,
Só inércia.

É para me amar que te desamo,
Para acender o que você sempre viu apagado.
E uma voz me diz: como é difícil me amar!
Como posso me reinventar na negação de lhe ser submissa?

Banzo, fado, silêncio.
Choro na solidão do meu quarto o medo de ser tão reles
Quanto você me fez.

Busco no espelho a ressaca em meus olhos,
Meus cabelos de Iara.
Busco nos meus quadris a quentura da umbigada.

Não as guerrilheiras,
Não as mártires,
Mas os perfumes e as camas

Que não a sua.

Dali

Ao fundo da mulher montanha nuvem,
Duas figuras solitárias contemplam a praia e as pedras.
Como são pequenas mãe e filha, como se alongam suas sombras
Ao toque do vento salgado e de um sol sem cor!

Dali, no papel pardo, me tocou mais em seu estudo
Com mãe e filha ao fundo da loucura
Do que com sua psicodelia comercial.

quinta-feira, 24 de julho de 2014

cálice

É noite. O sangue inesperado manchou minhas roupas mais uma vez.
Bem no meio da cartela.

Faz tempo que ninguém me toca,
Então não pode ser um aborto
(nem das outras duas vezes podia ser um aborto),

Mas eu penso nas pontadas ocasionais
E nos sangues não requisitados,

E é como se eu visse meu futuro escorrendo pelas pernas.
Nunca pensei que "abortado de medo" pudesse
Ir além de uma metáfora.

Vazia, encharcada de sangue,
Penso em mim mesma como um possível defeito
E a amargura me toma a boca

De mais um sonho a não ser realizado.
Meu futuro escorre pelas pernas,

Não abortado, nunca existente.

domingo, 20 de julho de 2014

julhina

Quando você se aproximou eu tentei manter o decoro.
Meu estômago deu um nó e eu queria você longe.
Eu estava feliz, vendendo e distribuindo meu afeto.

Eu estava feliz, nos braços da menina de sardas.
E você veio para o meio dos meus amigos.
Esqueci da menina de sardas, só pensei em não te ferir.

Ha, que mentira!

Pensei foi em não te dar motivos para me ferir de volta.
Você é uma pantera, não um gatinho.
Não acredito nessa sua pose de mártir,

Não acredito que você aprendeu porra nenhuma
Ou que não vai querer se vingar de mim de novo.
Conscientemente ou não.

Como você gosta de fazer as coisas involuntariamente!
Como é bom ser irresponsável!

Eu não sou. Pus a menina num abraço casto
E fiquei te olhando de tocaia, esperando você partir.

Interrompi seu flerte com outra menina bonita.
Roubei ela dos seus braços e giramos.
Te olhei de tocaia, me vingando do que você não fez.

Sou pantera também. Bicho ferido e vingativo.